A memória é, talvez, a mais preciosa das nossas faculdades humanas. Não é uma emoção, tampouco uma sensação. É uma habilidade — uma capacidade mental que só floresce a partir da vida vivida. É a nossa “caixa de Pandora”, guardiã de tudo aquilo que somos e fomos. A minha memória, pessoalmente, é um baú de tesouros. É o bem mais valioso que possuo. Graças a ela, posso revisitar a nostalgia, a saudade, o aprendizado, o amor — e, inevitavelmente, a dor.
Quando o cheiro abre o baú
No meu caso, é o olfato que gira a chave desse baú. Tenho um faro extremamente sensível e, quando fecho os olhos para acessar uma lembrança, ela sempre vem acompanhada de um cheiro. É por isso que coleciono perfumes: não para exibir frascos, mas para guardar minhas memórias mais profundas. Cada fragrância é uma cápsula do tempo, um portal secreto para momentos que, de outra forma, talvez se perdessem.
Perfume e infância: o encanto em Beirute
Quando preciso de um pequeno afago, abro meu armário de perfumes como quem abre um diário. Escolho um frasco e viajo. Um dos mais antigos desses frascos me leva diretamente às tardes da minha infância em Beirute, quando acompanhava minha mãe em visitas à casa de suas amigas. Sentada no sofá da sala, eu me encantava com aquelas mulheres — sempre impecáveis, conversando sobre o mundo: Paris, Roma, Londres, Genebra… Falavam de livros, da vizinhança, do programa noturno de sexta-feira, e depois me levavam para tomar chá com éclair na confeitaria mais bonita da cidade.
O perfume que envolve essa memória é Rive Gauche, de Yves Saint Laurent. Um clássico aldeídico com notas de rosa, vetiver e musgo de carvalho, ele é o retrato olfativo da mulher elegante, culta e livre. Para mim, esse aroma é o abraço sofisticado da feminilidade dos anos 70: uma mulher forte, cosmopolita, segura de si — como aquelas que eu observava, fascinada, na sala de estar.
O sabor das amêndoas e os segredos da família
Minha infância no Líbano tem também o cheiro das amêndoas, sempre presente nas festas, nas cozinhas, nos mercados. Nenhum perfume capta melhor essa essência do que o Almond Suede, da Arquiste. Um gourmand ambarado que mistura amêndoas tostadas com toques de couro macio e resinas orientais. É o Líbano dos meus primeiros anos, engarrafado com precisão. É o cheiro da casa da minha avó, do doce servido nas tardes de verão, dos tecidos finos guardando pequenos segredos de família.
Perfumes que moldam quem me tornei
Há perfumes que não apenas me lembram quem eu fui, mas também me dizem quem eu me tornei. Eles não só guardam momentos — moldam destinos. Um deles é o Portrait of a Lady, de Frédéric Malle. Eu o descobri já adulta, num período em que começava a ocupar espaços mais difíceis, mais meus. É uma fragrância intensa, exuberante, feita de rosa turca, patchouli, incenso e cravo. Um perfume que não pede licença — entra, ocupa e transforma. Como as decisões importantes que tomei na vida: abandonar uma carreira confortável, mudar de país, recomeçar. Portrait é o cheiro da minha coragem. Quando o uso, lembro que me tornei exatamente a mulher que a menina libanesa sonhava ser — mesmo sem saber que sonhava.
O perfume da introspecção e do silêncio
Há dias em que a vida pede silêncio. Não o silêncio vazio — mas aquele que escuta. É nesses momentos que recorro ao Incense Kyoto, da Comme des Garçons. Um perfume feito de introspecção. Minimalista e espiritual, mistura cipreste, incenso, café e vetiver com uma reverência quase monástica. Ele me leva direto aos invernos que passei sozinha em cidades estrangeiras, em bibliotecas silenciosas, em museus quase vazios. Também me lembra dos corredores frios de mosteiros europeus, onde entrei apenas para descansar do ruído do mundo. Há uma calma cerimonial nesse perfume. Um recolhimento bonito, como se cada nota dissesse: “Está tudo bem não saber. Está tudo bem apenas sentir.”
Kyoto é o perfume da minha meditação, das perguntas sem resposta, das cartas que nunca enviei. É o cheiro do meu pensamento mais puro — aquele que vem quando o ego se cala e a alma, finalmente, sussurra.
Quando o mistério veste perfume
E depois há Perles de Lalique, que é o oposto exato. Uma ode ao feminino afiado, misterioso, quase inacessível. Com pimenta de Bourbon, íris, patchouli e a cremosidade sombria do cashmeran, esse perfume não é para agradar — é para marcar. Uso quando quero lembrar que também sou feita de bordas, que a delicadeza pode ter espinhos. Ele me leva de volta aos eventos em que precisei vestir minha versão mais elegante e impenetrável. Festas com saltos altos demais, jantares em que se fala mais com os olhos do que com palavras.
Perles é o meu vestido preto invisível. É o perfume da mulher que observa antes de agir, que dança com a dúvida alheia e que aprendeu que o mistério é, muitas vezes, uma forma de proteção. Ele não pede elogios — impõe respeito.

De volta ao verão: quando tudo era suficiente
E, para encerrar esta jornada pelas fragrâncias da minha vida, volto àquela que talvez seja a mais solar de todas: Virgin Island Water, da Creed. Nenhum perfume traduz melhor a liberdade de estar longe de tudo — e perto de mim.
Ele me leva direto à minha primeira viagem ao Caribe: Barbados, 1987. Na época, a ilha ainda era pouco explorada, resquício vivo das colônias britânicas, com seu charme despretensioso e sua beleza intacta. Eu dirigia um buggy do lado direito da estrada, como os ingleses, com os cabelos soltos ao vento e nenhuma pressa de chegar. O mar parecia conversar com a pele, e o cheiro do meu bronzeador se misturava à brisa salgada, criando uma fragrância única que só a memória é capaz de guardar.
Virgin Island Water é isso: uma explosão de coco fresco, limão-siciliano, gengibre e rum branco. Um coquetel embriagante de verão, juventude e vento. Um perfume que não se passa no pulso — mas numa praia escondida, onde o tempo não corre. É o cheiro da despreocupação. Do agora. De quando a vida ainda não tinha exigido grandes respostas, e o simples fato de existir era mais que suficiente.
Esse é o frasco que escolho quando quero reencontrar a versão mais leve de mim — aquela que acredita que basta o mar, o céu e um pouco de sal na pele para que tudo fique bem.